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quinta-feira, 14 de junho de 2018

Lésbicas Maduras

Em 2008, o CEDOICOM (Centro de Documentação e Informação Coisa de Mulher) lançou um concurso de contos lésbicos. 
A iniciativa, relevante e estimulante, fez com que eu e minha amiga, a escritora Marli Porto enviássemos contos inéditos para participar e nossos trabalhos foram selecionados.
Recebemos inclusive exemplares como direitos autorais. No entanto, meu conto saiu com o pseudônimo utilizado ao enviar o trabalho. Mesmo assim, foi uma experiência interessante. 
O conto está abaixo e aborda o amor de duas mulheres em fase madura.



Beirando os Sessenta                     
A Iraci tem cada uma!                       
Alguém está interessado em saber sobre a vida de duas lésbicas quase sexagenárias e suas lembranças?
Creio que não teremos muitas chances de seleção entre as mulheres que  participarão deste concurso.
No entanto, se eu não fizer minha parte, ela vai ficar chateada alguns dias, entristecida por semanas e mal humorada pela eternidade.
Posso começar pelo nosso primeiro contato, na escola estadual onde lecionávamos para adolescentes inquietos.
Foi tudo tão lento e diferente dos dias de hoje que certamente tornaria a leitura enfadonha.
Acho melhor iniciar pelo dia em que ela veio jantar aqui em casa.
Nossa amizade já estava no segundo ano.
Apenas amizade.
Nada de olhares maliciosos ou algo que indicasse haver ali, o solo fértil para um contato amoroso.
Só naquele jantar, algo diferente aconteceu:
Minha mãe já estava dormindo.
Eu estava lavando a louça e a Iraci me ajudando; eu lavava e ela enxugava e guardava.
O vinho,  durante o jantar, foi uma alavanca para que eu tomasse uma atitude  ligeiramente reveladora.


Quando ela pegou alguns talheres da minha mão para secar, apertei delicadamente sua mão, fitando seus olhos e dizendo:
- Queria que você viesse jantar todas as noites aqui.
Ela ficou sem graça e mostrou um sorriso amarelo.
No dia seguinte, na escola, parecia que tínhamos feito algo pecaminoso (por favor, entendam que estávamos em 1978!).
O segundo jantar só aconteceu semanas depois na sua casa, em um sábado onde ela estava sozinha; os pais e o irmão viajando.
A Iraci serviu vinho, insistindo para  eu repetir a dose. Percebi nela,  um olhar diferente e um ar insinuante.
Tomei coragem e me aproximei, fazendo acontecer nosso primeiro beijo, depois da sobremesa.
Tudo bem, foi um beijo desajeitado e tímido.
O doce sabor ainda impera  em  minhas lembranças, bem como a  frase que ela disse depois:
- Acho que estamos ficando loucas!                                              
Nos tempos de hoje, provavelmente acabaríamos na cama, entregues aos desejos que brotavam.
Naquela época, o beijo foi o suficiente para entrarmos em pânico com nossos sentimentos.
Fui parar no divã de uma terapeuta e ela na igreja, mas quando a Iraci pegou uma gripe forte e ficou quatro dias de cama, senti tanto sua falta na escola que percebi o quanto estava apaixonada.
Fui na sua casa, declarei-me e aproveitei a oportunidade; ela estava ali na cama e dei-lhe um beijo terno, morno e prolongado.
- Você vai pegar gripe.
- Tudo bem, o que vier de você, eu pego com prazer.
Muita água passou por debaixo dessa ponte.
Tivemos crises e permanecemos lado a lado em quase todas, com exceção de uma época difícil, onde a família da Iraci descobriu nosso namoro.
Ficamos afastadas seis meses.
Pressionada, ela conseguiu uma transferência para outra escola.
Isso acabou sendo providencial, pois o que mais temíamos é que nosso ambiente de trabalho fosse palco de fofocas sobre nossa sexualidade e envolvimento.
Foram seis meses em que a meta principal da sua família era vê-la namorando.
O irmão trazia todos os amigos solteiros e disponíveis em casa, a mãe fazia contato com as vizinhas, perguntando se conheciam algum rapaz de família interessado em namorar sério e até o pai chegou a trazer o filho do sócio para  jantar, demonstrando claramente que queria ver a filha namorando alguém trabalhador como ele.
Felizmente a Iraci bateu pé firme e disse que não aceitaria alguém escolhido por terceiros; se tivesse que namorar, seria por escolha própria e eles desistiram, pelo menos aparentemente, de impor um namorado.
Ficaram então, com as antenas ligadas, ouvindo telefonemas, prestando atenção nos horários de saída e de chegada e vez ou outra, alguém passava “casualmente” na porta da escola , justamente na hora da saída, obviamente para averiguar se eu não estava por perto.
Fiquei afastada, vivendo minha dor e esperando que o afastamento fosse passageiro.
E realmente foi. Na reaproximação, o sentimento mostrou-se fortalecido.

Daqui a pouco ela vai chegar da hidroginástica.
Desde que saiu, estou trabalhando nesse conto.
Ou será crônica, por ser verdadeira?
Bom, tomara que ela goste.
A Iraci é exigente e vive me atribuindo dotes literários que não tenho, ou pelo menos, acho que não.
Eu queria ter coragem de colocar no papel fatos picantes, isso ela ia aprovar.
Minha alma, reservada e tímida, impede textos sexualmente detalhados  e como coube a mim a elaboração do conto, vai ser do meu jeito.
Já sei! Vou contar sobre o dia em que fomos a uma feira de produtos eróticos com o sobrinho dela, gay assumido na família.
Ele está sempre aqui em casa, com o namorado.
- Vamos tias, vocês vão adorar.
A Iraci, encantada com tudo que via,  estourou nosso orçamento com bolinhas, cremes, camisinha de língua,   e  apetrechos variados. O sobrinho dizia:                                          
- Êita que essa noite vai ser das boas!
Eu é que sei!
Ela voltou tão cansada que dormiu a noite inteira e para ser franca, se usamos aqueles badulaques duas ou três vezes, foi muito.
Será que ela não vai gostar dessa parte?
Mas quem mandou me colocar em frente ao computador, “ordenando”:
- Benzinho, só saia daí quando fizer pelo menos o esboço de um conto, baseado nos nossos trinta anos de amor lésbico.
Ainda frisou: amor lésbico.
E desde quando o amor precisa de termo adicional?
Amor é amor e pronto.
Já sei; agora lembrei de algo que vai prender a atenção de quem lê.
Foi um momento inesquecível de nossas vidas; percebemos que não estávamos totalmente sozinhas.
Era o quinto ano do nosso relacionamento; depois de seis meses afastadas, como citei, voltamos a nos encontrar  sem a liberdade de antes pois os pais e o irmão dela,  pareciam detetives.
Minha mãe, uma viúva pacata que sabe mais do que aparenta, certa vez viu-a  entristecida e disse:
- Por que você não vem morar aqui em casa? Quem não tem paz no lar, precisa bater asas e voar.
Essa sugestão foi um presente, mas  “Dona” Iraci, lerda feito uma tartaruga manca, só aceitou o convite da mamãe quando teve uma discussão com a família que praticamente a expulsou de casa, ao descobrir que estávamos juntas novamente.
Vale lembrar que ela rompeu com a família e só voltou a ter contato com todos, quatro anos depois, quando o pai teve sérios problemas de saúde e perto de falecer, manifestou o desejo de se reaproximar da filha, concluindo que tinha sido muito duro com ela.
Chegou a solicitar que eu também fosse visitá-lo no hospital e disse  não entender o que sentíamos uma pela outra mas pedia perdão por todo mal que tinha nos causado e principalmente pelas palavras ditas na época em que a Iraci foi embora da sua casa.
Com olhos lacrimejantes, ele me falou:
- Regina, sei que você gosta  da minha filha, vai cuidar dela melhor do que nós cuidamos e com o carinho que eu neguei nesses últimos anos.
Foi a primeira vez que ele se dirigiu a mim com respeito e pelo que a Iraci diz, foi a primeira vez que me chamou pelo nome, pois nas discussões familiares, ele só me chamava de: aquela mulata indecente.
   Acho que isso não vai ficar legal.
   Vai parecer   melodramático.
Ou melhor; vai parecer apelativo, mas pensando bem, é essencial registrar essa passagem que marcou o início de uma nova etapa familiar, onde todos se uniram aceitando as diferenças.
Passei a fazer parte da família da minha amada e eles começaram a se aproximar lentamente até da minha casa, onde mamãe recebeu-os com braços abertos.
Nessas décadas de amor compartilhado, tivemos muitos momentos  alegres.
É óbvio que passamos por situações diversas ao longo do tempo e  por determinadas mudanças. Estamos sempre exercitando o aprendizado individual da vida, mesmo vivendo ao lado de alguém.
No decorrer do tempo, parei de fumar antes da Iraci. Foi uma época complicada.
Eu não suportava o cheiro de cigarro que ficava impregnado nas roupas dela e não podia exigir que ela parasse com o mesmo vício que tive.
Fui suportando seu hálito de fumante  sem brigas ou intolerâncias.
Conviver requer jogo de cintura, aceitação e muita paciência.
Eu só pedia para  ela não fumar perto de mim ou dentro do nosso quarto.
Sei que também foi difícil para a Iraci, assistir minhas mudanças nos hábitos alimentares.
Comecei boicotando uma rede internacional de lanchonetes, por me preocupar  com o que estava ingerindo, depois fui me sensibilizando cada vez mais com a crueldade cometida com qualquer espécie animal, em seu abate.
Quando decidi me tornar vegetariana, foi um choque para a Iraci:
- E nosso churrasquinho de fim de semana? Como vamos receber nossas amigas? Oferecendo alface, soja e rúcula?
- Deixe de ser irônica.
- Regina,  você está radicalizando e isso vai tornar as coisas difíceis entre nós. Sempre fomos à churrascarias e você se empanturrava de picanha e linguiça; agora vem com essa história de ser vegetariana em respeito aos animais!
- Claro. Se você ama os animais, como pode comê-los? Acaricia nosso cão em casa, afaga o cabritinho no sítio, comenta sobre o olhar tristonho da vaca e come bife no jantar!
- Como assim?
- Ora se você ama os animais, tem que amar como um todo; por que ama uns e come os outros?
Para ser franca, acho que essa foi nossa maior crise de relacionamento.
Assistia churrascos aqui em casa, vendo minha mãe e ela, comerem com prazer.
Nossos convidados ocasionais elogiavam o tempero, não esquecendo de me cutucar, perguntando:
- E você, dona Vegê, está satisfeita com a maionese?
O apelido Vegê pegou e só me libertei dele recentemente quando finalmente as mulheres da minha vida, também se tornaram vegetarianas.
Melhor dizendo: quase vegetarianas.
Mamãe ainda come um franguinho e peixes e a Iraci de vez em quando
compartilha da comida da sogra que entrou na casa dos oitenta, com saúde, lucidez e serenidade.
Em dois anos serei sexagenária e a Iraci em um ano e meio.
Nosso amor não envelheceu; fortaleceu-se e solidificou-se em nossos corações.
Com prazer, notamos as transformações conquistadas, em boa parte pela militância dos corajosos e pela persistência de quem batalhou por uma sociedade onde a homossexualidade não pode ser vista como  aberração.
Sabemos que muitas conquistas ainda precisam acontecer, mas os avanços são constantes e visíveis.
Na década de setenta ou oitenta, em uma viagem,  era praticamente impensável entrar em um hotel com a Iraci e pedir cama de casal.
Seríamos vistas com olhares de espanto, horror ou asco.
Hoje, os bons hotéis preparam seus funcionários para um tratamento respeitoso, como realmente deve ser, tanto para casais heteros como homos.
Existem pousadas para gays e lésbicas em muitos pontos turísticos do Brasil e do mundo, onde é possível ficar a vontade, sem olhares enviesados.
Pela internet, podemos checar esse tipo de informação. Nós , resistentes as facilidades do mundo virtual ( só nos rendemos a internet em 2001), decidimos conhecer uma encantadora cidade histórica  do Rio de Janeiro.
Chegamos ao Centro de Informações Turísticas, levemente envergonhadas mas tínhamos que perguntar algo...
A Iraci falou baixinho para uma atendente:
- A senhora sabe informar os nomes de algumas pousadas gays, aqui ?
A mulher, despreparada para o cargo de atendente ou para tal situação, falou bem alto com um rapaz que estava saindo:
- Júlio, você sabe o nome daquela nova pousada gay?
O local inteiro, repleto de turistas, ouviu sua pergunta.
Senti o rosto em brasa e a Iraci ficou vermelha feito um tomate, com olhos arregalados e a respiração suspensa.
Foi constrangedor.
O que valeu é que o tal Júlio indicou não uma e sim, duas pousadas.
A gente venceu a vergonha, acabou se instalando e até fazendo amizades com duas hóspedes,  uma argentina e sua namorada brasileira.
Só a noite, durante o jantar regado a cerveja, com nossas novas amigas da pousada,  relaxamos e rimos da situação.
Notei que a brasileira se comportava de uma maneira muito natural e tranqüila, até nas sutis demonstrações públicas de afeto com a namorada.
Ela comentou que tinha sido extremamente obesa na adolescência, sendo alvo de preconceito e farpas na escola, vizinhança e no cotidiano em geral.
A descoberta da sua homossexualidade não foi traumática e com a experiência de quem passou por maus bocados pelo peso elevado, ela concluiu:
- O preconceito que sofri pela obesidade foi massacrante; quem vê alguém na rua, não pode identificar com certeza a orientação sexual da pessoa, mas a obesidade é algo que não se oculta dos preconceituosos.
Ouvindo isso, percebi o quanto tinha supervalorizado os malefícios do preconceito sobre minha homossexualidade.
Eu exagerava em doses cavalares, coisas pequenas e simples como ir ao motel com a Iraci, por exemplo.
 Só tive coragem de conhecer um , quando completei cinqüenta anos!
E isso não é só pelo temor de reações externas; precisei vencer obstáculos internos e aceitar que ir a um motel com a mulher que amo, não é um bicho de sete cabeças.
No entanto, somos de uma geração bem mais repressora que a atual.
Ao entregar nossas identidades, eu tremia e imaginava o que a recepcionista do motel poderia estar pensando.
Coisas de uma senhora vinda de outros tempos.
Hoje, percebo que boa parte das pessoas mais jovens, não está muito preocupada sobre o que os outros pensam da sua sexualidade.
O sobrinho da Iraci, através de suas amizades, nos fez conhecer pessoas em paz com sua orientação sexual, antes mesmo de atingirem uma idade considerada madura.
Garotas e garotos de vinte e poucos anos, trabalhando, estudando e principalmente amando sem imaginar que serão punidos pela eternidade.
Viva a modernidade!
Que ela seja repleta de paradas coloridas, leis promulgadas e beijos na tv.

Estou ouvindo o carro da Iraci.
Tomara que ela goste do que vai ler.
Exigente como é, vai sugerir alterações.
- Amor,  terminei minha “lição de casa”.
- Muito bem. Vou ler agora mesmo.
- Você está cheirando a cloro.
-Você sempre diz isso. Cadê meu beijo?
- Só darei depois da sua leitura.
- É pra já.

A Parte Que A Iraci Não Leu

Vou para o quintal; ando para lá e para cá, entre roseiras, bromélias e cactus.
Esfrego as mãos, olho para o céu e tento imaginar minha amada sentada diante do computador, lendo o que escrevi.
A palavra dela terá grande peso e sei que na mínima demonstração de desapontamento, vou travar.
Não quero enviar algo incapaz de mostrar, pelo menos parcialmente, o que foi nossa história e  trajetória ao longo de tantos anos.
Posso até alterar algo aqui e ali, mas não vou mexer na essência de tudo que brotou em palavras motivadas por lembranças.
Dispensei alguns pormenores doloridos como  noites em claro, lágrimas e angústia, por achar desnecessário diante de tudo que conquistamos: uma vida feliz com o  amor atravessando décadas, rompendo barreiras e desafiando imposições.
- Regina.
Ela está me chamando.
- Vem cá, minha escritora preferida.
- Não vai dar palpite, fazer críticas ou sugerir alterações?
- Claro que não. Era o que você esperava, mas ainda posso te surpreender. Por mim está perfeito. Agora quero beijo.
O beijo aconteceu.
As horas passaram...
Silêncio.
Preciso levantar com calma, a Iraci tem sono leve.
Vou dar mais uma esticadinha no conto; essa parte não vou mostrar.
Continuo achando pequenas nossas chances, mas  tentar é melhor que reclamar.



















                           

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