Não, não venho contestar Sigmund
Freud. Quem sou eu? Talvez, adicionar, pretensiosamente, em suas lições sobre
psicanálise, um adendo breve a respeito da homossexualidade. Ou bastaria dizer:
sexualidade.
É fato que a literatura, como todas
as outras formas de expressão e arte escrevem e reescrevem o Complexo de Édipo,
tornando-o vivos nos possíveis enredos sociais fictícios (ou não). Lembrando
que essa teoria freudiana refere-se ao desejo infantil masculino pela mãe,
tornando, inconscientemente, o menino filho espécie de rival do pai. O
contrário, segundo o psicanalista, aplica-se à menina, que apaixonada pelo pai
quer roubar o lugar da mãe. Porém, e nos casos homossexuais? Bi? Trans? A teoria
não se aplica?
De acordo com Freud, a
homossexualidade estaria relacionada com a incapacidade de o ser humano se
desprender do próprio corpo, desejando alguém com corpo igual ao seu.
Primeiramente, o fato é que nenhum corpo é igual ao outro. Nem o de dois
homens, nem o de duas mulheres... Logo, onde estaria o universo infantil dos
homossexuais? Infância responsável pelos traumas, valores, descobertas
sexuais... Assim como provavelmente a criança heterossexual já aprende sua
“função” social (de fêmea/macho, princesa/cavaleiro, ativo/passivo) desde os
primeiros contatos com os outros humanos, a criança lésbica, gay, trans, bi
também já inicia suas descobertas sexuais, porém que muitas vezes, na maioria,
têm as descobertas sexuais propositalmente direcionadas para a
heterossexualidade. Quem faz isso? Quem as direciona? Oh! Não me diga que não
sabe! Sim! A família, a escola, a religião, as artes, a mídia, as sociedades...
Salvo raríssimas exceções.
Se você não acreditou que uma
criança pode ser homossexual e que isso ocorre por natureza, assim como ser
hétero, provavelmente é porque na sua infância e vida posterior tudo o que lhe
foi apresentado fala de uma única verdade: a língua da família-modelo: homem
(chefe) + mulher + filhos = perfeição. Inclusive, agregando a isso os
famosíssimos contos de fada (infantis? - Bruno Betthelheim). Como não ficou
claro? A princesa (sexo feminino) briga com a bruxa rival (sexo feminino), no
fim, resolve seus problemas com auxílio de alguém que ama, um príncipe (sexo
masculino) e com ele vive feliz para sempre. Essa é sim uma verdade, doce e
poética, mas não pode ser a única!
É, mas como disse Maria da Glória
Azevedo, no posfácio de As guardiãs da magia, de Lucia Facco, a
literatura é um bicho que consegue desfazer os nós que se lhes impõem. Como
assim? Quer dizer que não adianta forçar o silêncio das pessoas, principalmente
das artes, em algum momento a voz silenciada se pronunciará. É o que fez, por
exemplo, Cassandra Rios. Silenciada, ignorada e sentenciada ao pornográfico pela
crítica canônica, vendeu mais livros que muito best-seller, inclusive o romance
Eu sou uma lésbica – que conta a trajetória de uma lésbica apaixonada
desde a infância pela vizinha e amiga de sua mãe. Cá está a infância lésbica
acrescida às lições de Freud: Narrado em primeira pessoa, Flávia, com 7 anos,
vive embaixo da mesa da sala de sua casa, observando as pernas das amigas da
mãe; uma das pernas, a de Kênia, a encanta tanto que chega ao ponto de
cheirá-la e lambê-la fingindo ser um gatinho sob a toalha. Flávia delira com a
presença da moça de sandália colorida e
a deseja como sua – assim como o menino deseja a mãe no Complexo de
Édipo. A mãe de Flávia, no entanto, não é desejada com fervor sexual, mas
admirada e amada com afeto de filha, sendo comparada constantemente com Kênia.
O pai sequer é mencionado. Entretanto, isso não significa que a figura do pai
não é importante, apenas não é fortalecida nesse romance.
Com o desejo ardente por Kênia, a
menininha vê como rival o marido da mulher, Eduardo. Pouco tempo depois das
primeiras relações carnais das duas amantes secretas (sim, Kênia sede aos
desejos da menininha), a mulher se muda para a Itália a fim de curar o câncer
de Eduardo, que por sua vez, acaba discretamente assassinado, numa passional
pulsão de morte, pela amante de Kênia, que dera a ele sopa com vidro em pó
horas antes de partirem para Europa. O crime é revelado somente no fim da
narrativa, depois da história da adolescência lésbica de Flávia, surpreendendo
quem lê pela atitude insuspeita da garotinha de 7 anos. O que quero dizer com
isso? Não! Não é um incentivo para que mate os seus rivais sexuais! É muito
mais simples: desde crianças desejamos nosso “objeto sexual”, seja homem ou
mulher e isso existe, ainda que inconscientemente, ainda que tentem reprimir ou
desqualificar esse desejo usando teorias de Freud, que aliás, que eu saiba,
nunca disse existir uma única verdade; ou qualquer outra ideia, seja religiosa,
seja sei lá qual... É sim, bi, lésbicas, trans, gays existem e é desde que existe
gente no mundo, por natureza, desde a misteriosa infância e não por desvio,
anomalia sexual. Infelizmente, criam distinções sexuais para nos segregar.
Tolice! Porque precisamos/dependemos uns dos outros. Não adianta esconder, onde
estão os contos de fada que nos façam sentir normais e possíveis na infância,
na juventude? Esse é um dos motivos da literatura de Cassandra Rios: ser lida
para que não corramos o risco de vivermos sob a voz de uma única verdade.
4 comentários:
Li esse romance e o livro é formato pocket. Passei por apuros ao comprar esse livrinho na livraria. Tive que ser discreta apesar da livraria ser grande e haver esse livro na estande sem precisar pedir para o vendedor, mas ao passar pela caixa para pagar tive que levar uma revistinha do Garfield, mas mesmo assim a capa dispertou atenção de olhares do pessoal da fila, sendo que a mesma atenção que não seria tanto se fosse um outro livro.
Entendo a situação pela qual vc passou.
Várias mulheres se sentiam constrangidas para comprar as publicações da Katita em livrarias de SP (qdo havia um distribuidor).
Assim sendo, mesmo morando em SP, elas preferiam comprar via correio, para receber em envelope lacrado e discreto.
Deduzi que deixar publicações lésbicas (mesmo quadrinhos) na maioria das livrarias, ainda não é um bom negócio.
Decidi então deixar o mínimo possível e em pouquíssimos lugares.
Não,meninas! Temos mesmo que comprar os livros lésbicos nas livrarias! Só assim,de pouco em pouco,vamos deixar d ser "equisitas"...
É isso aí, Marina!
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